O resgate da liberdade pela competitividade

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O mundo vem, gradualmente, reconhecendo que os projetos políticos marcantes do século XX não resultaram em efetiva garantia da liberdade como premissa para o desenvolvimento econômico e social. 

A realidade é bem mais dura: todas as alternativas estão emperradas na tensão que existe entre o intervencionismo “suave” das sociais-democracias e o paternalismo explícito dos regimes autoritários.[1] O exemplo da Argentina é, talvez, o mais notável no contexto latinoamericano, considerando que a manutenção do modelo populista por mais de meio século foi responsável pela retração econômica constante.[2]


Diante de um cenário como este, a estratégia para uma reforma duradoura e eficiente precisa partir da base institucional; é dizer, em outras palavras, que a estrutura axiológica precisa ser questionada. O primeiro passo foi dado com a edição da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, conhecida como “Lei de Liberdade Econômica”, na qual, aliados aos seus quatro princípios norteadores, instituiu-se, enfim, um paradigma de interpretação pró-liberdade no ordenamento jurídico brasileiro.[3] Com esta conquista primária, o desenho de políticas públicas pragmáticas, baseadas em dados e evidências, que promovam a livre-concorrência de mercado se abre como possibilidade concreta.


Neste compasso é que vieram todas as regulamentações da Lei de Liberdade Econômica. Iniciando com o “Licenciamento 4.0” (Decreto º 10.178, de 18 de dezembro de 2019), uma das mais importantes, passamos a contar com um regramento transversal para classificação de risco de atividades econômicas e aprovação tácita como efeito para o silêncio administrativo. Mais para frente veio o regulamento de “Internacionalização Normativa” (Decreto nº 10.229, de 5 de fevereiro de 2020), o qual permite a aplicação de norma técnica internacional, sob responsabilidade do particular, quando aquelas de direito interno tiverem se tornado desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico. Pouco tempo depois foi editado o Decreto nº 10.278, de 18 de março de 2020, o qual fixou os requisitos técnicos para que documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais que os originais físicos. Mais recentemente, enfim, tivemos a publicação do Decreto nº 10.411, de 30 de junho de 2020, o qual regulamenta a análise de impacto regulatório (AIR), com o objetivo de exigir fundamentação técnica, objetiva e transparente como premissa para elaboração de normas regulatórias.


Por parte da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia, vale sublinhar a edição da Instrução Normativa Seae nº 97, de 2 de outubro de 2020, que institui a Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (FIARC), que funciona como um verdadeiro canal para instauração de requerimentos de investigação sobre normas que possam conter características anticoncorrenciais. A FIARC, ao buscar a participação da sociedade civil como meio de identificar práticas de abuso regulatório, se apoia em dois princípios fundamentais da produção técnico-científica: o de sociedade aberta[4] e o de assimetria do conhecimento[5].


A maioria desses marcos, além de estarem publicados, já estão produzindo efeitos, de modo que os particulares já podem se beneficiar e buscar a concretização dos direitos positivados na Lei de Liberdade Econômica, alguns destes sendo reconhecidos pela doutrina como direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal de 1988.[6] Sem embargo, as reformas capitaneadas pelo Poder Executivo não terminam com as referidas normas; ainda existem regulamentações pendentes da Lei nº 13.874/2019, além da necessidade de reformar o regramento geral de setor econômicos com grande participação no PIB, como os de construção civil e saúde.


Em conclusão, é sempre necessário lembrar que, por mais que liberalismo e capitalismo estejam unidos em sua gênese histórica, os conceitos não se confundem.[7] Além de uma base dogmática sólida que sustente a liberdade como pressuposto do exercício das atividades econômicas, também é preciso termos à disposição um ferramental que permita identificar e combater os vícios que se interpõem como barreiras à livre competição. Somente com a aliança de ideias e instrumentos, teoria e prática, podemos ter a perspectiva de compor uma Administração Pública eficiente, previsível, transparente e, acima de tudo, legítima.


[1] Sobre isso, ver: FRANKENBERG, Günter. “Authoritarian constitutionalism: coming to terms with modernity’s nightmares”. In: ALVIAR GARCÍA, Helena; FRANKENBERG, Günter (Ed.). Authoritarian constitutionalism: comparative analysis and critique. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2019, pp. 1-36.

[2] Especificamente sobre o tema: OCAMPO, Emilio. Entrampados en la farsa: el populismo y la decadencia argentina. Buenos Aires: Editorial Claridad, 2015.

[3] ACCIOLY, João Carlos de Andrade Uzêda. “Hermenêutica pro libertatem”. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier (Orgs.). Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 39-53.

[4] HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a intepretação pluralista e “procedimental” da Constituição. 1. ed. 1. reimp. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, pp. 29-30.

[5] Para isso, ver: HAYEK, Friedrich August von. Economia e conhecimento. São Paulo: LVM, 2019, pp. 65-75. Complementarmente, ver: HAYEK, Friedrich August von. A pretensão do conhecimento. São Paulo: LVM, 2019, p. 48.

[6] CAVALCANTI, Mariana Oliveira de Melo. “Comentários aos art. 4º, caput”. In: SANTA CRUZ, André; DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan (Orgs.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: comentários à Lei 13.874/2019. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 257-269.

[7] OLIVEIRA, Amanda Flávio de. “Liberdade Econômica e Constituição de 1988”. In: OLIVEIRA, Amanda Flávio de (Org.). Lei de Liberdade Econômica e o ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, pp. 119-132.

Felipe Pessoa Ferro é bacharel em tradução e, atualmente, Chefe de Divisão na Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia. 


Geanluca Lorenzon é bacharel em direito e, atualmente, Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia.


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