A virada de chave na saúde suplementar

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 Lei 9656/1998, que regulamenta o setor de saúde suplementar, completou 25 anos recentemente. A legislação representa um marco, pois, até então, esse mercado crescia e operava sem regras. Com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) dois anos depois, em 2000, as relações comerciais entre as empresas privadas que oferecem assistência à saúde e quem adquire seus produtos, ou seja, empresas, famílias e usuários, começaram a ser regidas por uma série de normas, entre elas, o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), um rol de procedimentos de cobertura obrigatória, reajustes por faixas etárias com limitação de idade, reajuste anual definido pela ANS para os planos familiares, entre tantas outras.


Nessas duas décadas e meia, o mercado privado de saúde passou por uma verdadeira ebulição, com a chegada vigorosa do capital estrangeiro, a introdução de novas tecnologias e uma série de fusões e aquisições que mudaram a cara do setor. Em paralelo, as operadoras de planos de saúde foram se ajustando, driblando dificuldades e adequando seus produtos a uma realidade e projeção de futuro que pudesse ser mais previsível. O resultado foi praticamente o desaparecimento dos planos individuais e familiares do mercado. Somente nos seis primeiros anos após a criação da ANS, os planos coletivos, que não têm reajuste anual definido pela agência reguladora, registraram crescimento de 184%. Atualmente, dos 50,5 milhões de usuários da saúde suplementar, 70% estão em planos coletivos ou por adesão e muitas operadoras sequer oferecem a venda de planos individuais ou familiares.


Centenas de Projetos de Lei (PL) tentaram, ao longo dos anos, mudar as regras da saúde suplementar e flexibilizar a Lei 9656/98, no intuito de oferecer mais opções e tipos de planos que pudessem caber no bolso dos brasileiros. Nenhum deles evoluiu e foi a plenário. Agora, o PL nº 7419/2006, um condensado de aproximadamente 270 PLs, promete alterar a estrutura legal da saúde suplementar. Mas, afinal, mudar a lei é realmente necessário? Alguns dados e acontecimentos mostram que sim.


Em 2022, os planos de saúde registraram um prejuízo operacional de R$10,7 bilhões, segundo a ANS. Paralelamente, nos últimos dez anos, em apenas uma ocasião as operadoras de planos de saúde não ocuparam o topo no ranking de reclamações dos consumidores, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Entre as principais queixas estão reajustes abusivos nas mensalidades, falta de informações, demora para marcação de exames ou consultas, negativas de procedimentos, dúvidas sobre contratos e, mais recentemente, o cancelamento unilateral dos planos. Do lado dos prestadores de serviços não é diferente. Levantamento realizado pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) em setembro deste ano com 48 hospitais mostra que os atrasos nos pagamentos por parte das operadoras de planos de saúde já somam cerca de R$ 2,3 bilhões.


Todos os elos que compõem a cadeia produtiva e econômica desse segmento estão insatisfeitos e clamam por mudanças estruturantes que levem a um sistema mais justo, acessível, integrado, perene e sustentável. Mas, para alcançar esse objetivo, antes é preciso debater qual é – ou deveria ser – o papel e os limites do setor suplementar dentro do sistema de saúde brasileiro. 23,7% da população (quase um quarto dos cidadãos) têm algum tipo de cobertura por parte dos planos de saúde. É óbvio que esse contingente contribui para desafogar os serviços públicos, ainda que todos tenham direito e utilizem alguns serviços do SUS, como os programas de imunização, por exemplo. União, estados e municípios dificilmente teriam fôlego orçamentário para arcar com a assistência integral à saúde de mais de 50 milhões de indivíduos. Portanto, o setor suplementar é importante para o país não só pelo acesso à saúde de parcela da população, mas também desempenha papel relevante na produção de serviços, na sustentação da indústria e na inovação tecnológica e de gestão.


As mudanças que estão por vir devem ter como foco a geração de valor e trazer segurança não apenas para os usuários, mas para todos os integrantes desse ecossistema. Os dados existentes precisam ser compartilhados, trafegar entre as partes interessadas, possibilitando transparência e confiança na relação, obedecendo, é claro, a proteção necessária dos dados do cidadão. Esse compartilhamento possibilitará a integração dos setores público e privado, contribuirá no combate ao desperdício e no desenvolvimento de programas de promoção à saúde de acordo com as características de cada carteira. Com os incentivos certos será possível criar previsibilidade e fidelidade entre usuários e operadoras, além de reduzir os tempos e desperdícios no ciclo da assistência.


Mas em verdade o que o PL 7419/206 propõe? Quais são as propostas de mudança do PL nº 7419/2006?


Controle para reajustes para planos coletivos

Como é

Proposta

Apenas os planos individuais têm o reajuste limitado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A ANS poderá intervir, independentemente do tamanho do contrato, se houver um aumento abusivo nas mensalidades dos planos de saúde, acima do limite estabelecido pela agência para planos individuais.


Proibição de rescisão unilateral

Como é

Proposta

As empresas podem adicionar cláusulas de cancelamento unilateral de contratos coletivos. Além disso, o plano poderia ser rescindido em caso de atraso de 60 dias, consecutivos ou não.

Fica proibida a rescisão unilateral de contrato por parte das empresas em qualquer tipo de contrato, seja individual ou coletivo. Exceto nos casos de fraude ou atraso de mensalidade por 60 dias consecutivos.


Fundo para doenças raras

Como é

Proposta

Não existe

O PL cria um fundo nacional composto por recursos públicos e privados para financiar terapias de alto custo destinadas ao tratamento de doenças raras. O funcionamento será definido pelo Ministério da Saúde.


Solicitação de exames

Como é

Proposta

As operadoras não são obrigadas a cobrir exames solicitados por nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais.

Os planos poderão cobrir exames laboratoriais solicitados por nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, desde que esses procedimentos sejam necessários para avaliar como tratar os pacientes a partir de suas áreas de atuação.


Prontuário único

Como é

Proposta

Os pacientes têm um prontuário na rede privada e outro no Sistema Único de Saúde (SUS).

O texto prevê a criação de um prontuário único para compartilhar dados relativos a consultas e exames feitos pelos pacientes no SUS e na rede privada. O objetivo é diminuir gastos desnecessários, como a repetição de exames.


E essas medidas resolvem os problemas da saúde suplementar? Em minha análise, a resposta é que não resolve em sua totalidade. A mudança precisa ser mais profunda, exige alteração no modelo assistencial, comercial e revisão de incentivos e entregas.


Uma alternativa que pode soar um tanto ousada para os padrões nacionais seria a implementação de um novo modelo assistencial na saúde suplementar que pudesse vigorar paralelamente ao atual. Essa terceira via funcionaria como um protótipo experimental e seus resultados – falhas ou êxitos - seriam acompanhados de perto por uma comissão composta por representantes de toda a cadeia e órgão regulador. Esse modelo funcionaria por período predeterminado e, se aprovado, certamente seria uma alternativa para parcela significativa da população que pode pagar por um plano mais acessível e hoje está alijada do sistema.


O momento é de ajustes de velas e, talvez, de novas alternativas de rota. Que todas as partes interessadas tenham a coragem de se despir das ideologias e certezas intransponíveis que carregam para que possam encontrar, através do confronto de ideias, as melhores soluções para todos. Afinal, não precisamos apenas virar a chave, mas abrir a porta certa para uma realidade que se mostre mais integrada, sustentável, perene e que realmente garanta acesso à saúde com qualidade para todos os brasileiros.


A sociedade civil organizada tem papel decisivo como agente de mudança na direção da evolução que o sistema de saúde precisa, o líder dessa mudança somos nós, líderes em saúde. Precisamos não somente acompanhar, mas nos fazer presentes e participativos nessa construção de tomada de decisão que fortaleça os laços de confiança, transparência e cooperação entre setor público e privado de forma a consolidar definitivamente o nosso sistema nacional de saúde.


Tacyra Valois, diretora Abrig e coordenadora do Comitê de Saúde da entidade e CEO do CBEXS – Colégio Brasileiro dos Executivos em Saúde.


Publicado originalmente no Jota.

*Os conteúdos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da Abrig.  

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