RRetornei à Brasília, minha cidade natal, no fim de 1999. Cidade redentora e maravilhosa que me acolheu de forma tão especial.
Após um período de adaptação à secura do cerrado, que fazia par à aridez daquele meu momento pessoal, tive a oportunidade de deixar o estágio na advocacia para assessorar o deputado Chico Sardelli que assumia como titular à uma vaga na Câmara.
Fui designado para “cuidar” das comissões as quais pertencia e fazer o assessoramento em relação aos projetos que o deputado relataria. Não raro, para não dizer rotineiro, havia (e ainda hoje há, mesmo após mais de 20 anos fazendo isso) divergência no entendimento de um ponto regimental sobre um projeto de lei. Aquele momento em que o chefe pergunta:
- Em que pé que está isso, dá pra passar?
Muito bem, do alto da minha total ignorância ao regimento e tendências, saía eu a garimpar informações. A beber água na fonte, num mundo pré Google. Utilizar a biblioteca, consultar um sistema off line de tramitação que hoje seria inexplicável, mas moderno à época, era parte da rotina inicial e obrigatória. Depois das questões formais e fáticas, me socorria com alguns amigos e ao final da epopeia, subia ao Olimpo para consultar o grande Oráculo da Casa – na verdade descia dois lances de escada para entrar no gabinete do Secretário da Mesa da Câmara.
Lá, a cena era caricata e sempre absolutamente igual. Invariavelmente com uma pasta de papéis debaixo do braço e uma cara cheia de espinhas e aquela pouca idade que nos desmerece, falava envergonhado “boa tarde, poderia por favor falar com o Mozart?”. A secretária, uma senhora de meia idade, sem computador ou Whatsapp para se entreter naquelas noites e madrugadas de sessões do plenário que se estendiam sempre, me entreolhava com um óculos meio abaixado e dizia: “qual seu nome, meu filho?”. Mais alguns (poucos) minutos e sentenciava: “Ulisses, Dr. Mozart pediu para entrar...”
Passando pela porta vinha aquela figura mítica, magra, baixa, de falar suave, com um sorriso discreto de canto de boca e meneando a cabeça sempre em gesto de sim. Estava diante do servidor público com a maior boa vontade e empatia que já conheci. Aos questionamentos que trazíamos, ouvia em silêncio e ao final de 4 segundos compilava oralmente a resposta à questão trazida. Era algo incrível ouvir as orientações com trejeitos dum ex-seminarista letrado:
Foto: Correio Braziliense
- Olha, realmente o Regimento peca neste ponto, mas uma Questão de Ordem apreciada em determinado mês e ano, pacificou o entendimento de que... Mas, se o deputado quiser seguir por outro caminho, temos o Recurso... Ah! Absolutamente mágico e irreparável. Em pouco tempo estava resolvido aquele limbo jurídico, legislativo e regimental.
Descobri em pouco tempo que era tio de coração de um grande amigo e cupido, Daniel Ramos da assessoria parlamentar do saudoso Ministério da Indústria e Comércio. Todos mineiros de Corinto. Embora Mozart fosse um homem extremamente reservado, tivemos a oportunidade de saborear um bom churrasco e de assistirmos a jogos do Glorioso Clube Atlético Mineiro. Iracy, irmão do Mozart, pessoa muito querida, que o trouxe para Brasília é torcedor do cruzeiro, mas sempre nos prestigiou com a sua presença nos eventos atleticanos – diplomatas!
Noutra vez, discutíamos eu e os diletos amigos Carlos Cidade e François-Xavier (em algum momento de 2014), a necessidade de atendermos às já crescentes demandas por acesso dos profissionais de RIG ao Congresso Nacional. Uma das alternativas seria via Regimento Interno da Câmara. O estalo mental foi instantâneo e a frase veio também imediata: “Vamos lá no Dr. Mozart?”. Saímos eu e o François para tratarmos disso em primeira mão. Mozart coçou a cabeça mas trouxe uma alternativa de mudança regimental que garantisse o necessário e regular acesso ao ambiente de trabalho de todos nós. Um Projeto de Resolução alteraria o Capítulo IV - DO CREDENCIAMENTO DE ENTIDADES, no artigo 259. Como tudo na vida que parece estar à mão, acabou-se optando por um caminho que ao fim não obteve este resultado. Uma pena.
Mozart Vianna de Paiva será sempre conhecido como o mais longevo assessor de presidentes da Câmara, o “pai do Regimento”, aquele que recebeu uma cadeira a pedido da esposa do presidente Severino Cavalcanti com a finalidade de não precisar mais ficar em pé durante aquelas sessões intermináveis.
Um servidor de carreira que começou como datilógrafo na Câmara dos Deputados e chegou ao Cargo de Secretário-Geral da Mesa, mas que sempre fez questão de deixar transparente que sua ascensão contou sempre com o excelente trabalho do corpo técnico da Casa. Sem falar da sua passagem pela iniciativa privada, como relações governamentais do Grupo Globo. Sim, Mozart também esteve do lado de cá.
Pra além de tudo isso, a pessoa mais gentil, inteligente, humilde, capaz, desprovida de qualquer sentimento de arrogância, atencioso, de espírito republicano e de uma disposição ímpar - serei sempre (apenas um de milhares) prova disso.
Como diria Rolando Boldrin - viajou antes do combinado. Outra pena. Ficamos aqui com o exemplo de correição e de bondade que sempre nos norteia.
Para todos os profissionais de Relações Governamentais e Institucionais, tivemos dele toda atenção e cooperação para sanar um dos problemas crônicos da nossa atividade – que à ele não afetava, mas se solidarizou de pronto. Para mim, nosso patrono!
Triste dia!
Brasília, 7 de junho de 2021.