Em artigo exclusivo para o Livro Mentores em Relações Institucionais e Governamentais, Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho do Diap, narra a rica experiência que teve no Congresso Nacional durante a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 40/2003, a Reforma da Previdência no Governo Lula.
Nessa negociação, o objetivo foi vincular o limite da remuneração dos procuradores dos Estados ao subsídio do Poder Judiciário e não ao Chefe do Poder Executivo dos respectivos Estados, como previsto originalmente na referida PEC.
Toninho é jornalista, consultor e analista político, ex-diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). Mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV-DF, é sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
Leia a análise:
Sou conhecido como Toninho do Diap, em virtude do vínculo profissional que mantenho com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, entidade da qual fui empregado e diretor, e para qual continuo prestando consultoria. Ao longo de mais de 35 anos de atuação na área de relações institucionais, acumulei experiência na montagem de estratégias na relação com os três poderes. Comecei a desenvolver esta habilidade durante a Constituinte de 1987/88, quando o Diap ganhou grande visibilidade pelo trabalho que realizou durante a Assembleia Nacional, cujo coroamento foi o livro “Quem foi Quem na Constituinte”, que divulgou o desempenho parlamentar nos temas relevantes, inclusive atribuindo notas individuais a deputados e senadores. Assim, em minha já longa trajetória profissional, tive vários casos de sucesso na defesa de interesses perante órgãos e poderes da República, tanto para associados do Diap quanto para clientes das empresas das quais sou sócio.
Neste texto, pretendo narrar uma experiência no Congresso Nacional que me pareceu a mais difícil, complexa e desafiadora, especialmente pela necessidade prévia de construção do contexto de atuação, sem o qual seria impossível ser bem-sucedido na empreitada. Por isso, é imprescindível, antes de detalhar a estratégia, situar o leitor sobre o objeto de atuação, descrevendo a parte da política pública que o cliente desejava modificar.
Trata-se da estratégia de atuação político-parlamentar que desenhei para a Anape - Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF - durante a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 40/2003, a Reforma da Previdência no Governo Lula - com o objetivo de vincular o limite da remuneração dos procuradores dos Estados ao subsídio do Poder Judiciário e não ao Chefe do Poder Executivo dos respectivos Estados, como previsto originalmente na referida PEC.
A PEC 40/2003, destinada à revisão de regras previdenciárias aplicáveis aos servidores públicos, tratou de vários aspectos, dentre os quais a revogação de diversas regras de transição da Emenda Constitucional nº 20, de 2003, a instituição de cobrança de contribuição de aposentados e pensionistas e, principalmente, a criação de subtetos remuneratórios nos três níveis de governo, sendo o subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal a referência no caso da União e o subsídio dos governadores e prefeitos, respectivamente, o parâmetro no caso dos Estados e Municípios, sem qualquer distinção entre os poderes e os órgãos subnacionais.
O subsídio dos governadores e prefeitos, na verdade, corresponde a uma verba de representação, na medida em que eles não dependem dela para sua sobrevivência, já que todas as suas despesas - como alimentação, transporte, moradia, entre outras - são custeadas pelo ente estatal, diferentemente do servidor ou agente político que, como regra, vive de seu próprio salário. Isso fez com que alguns servidores e agentes estaduais e municipais, que seriam prejudicados, atuassem para modificar o texto.
Registre-se, ainda, que ao vincular e limitar todas as formas de remunerações do serviço público estadual ao subsídio de governador, além de rebaixamento do salário e do subsídio de muitos servidores, membros de órgãos e poderes e de agentes políticos, a PEC estaria sujeitando a autonomia do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Ministério Público Estadual à vontade do Chefe do Poder Executivo Estadual, fato que ameaçava a separação e o equilíbrio entre os poderes.
Como desvincular a remuneração dos Procuradores de estado do subsídio do governador e vinculá-la ao subsídio do Judiciário, se nem mesmo os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público Estadual estavam livres dessa vinculação? O desafio era estabelecer uma estratégia que fosse capaz de realizar esse “milagre”.
No desenho da estratégia era preciso: 1) desenvolver uma tese e reunir os argumentos para defendê-la; 2) analisar as regras do jogo (o regimento interno da Câmara dos Deputados), incluindo as fases de tramitação da PEC e os prazos para cada uma delas; 3) mapear os principais stakeholders; 4) preparar as emendas e os documentos de apoio ao trabalho parlamentar; e 5) definir as táticas de atuação junto aos deputados federais, já que a PEC, por ser de autoria do Poder Executivo, iniciou sua tramitação pela Câmara dos Deputados.
Quanto à tese, procurou-se identificar, dentre as carreiras existentes nos estados da Federação, quais delas tinham similaridade com os cargos exercidos pelos Procuradores de estado. No Capítulo IV da Constituição Federal, que trata “Das Funções Essenciais à Justiça”, constatou-se quatro categorias de servidores e membros de poderes e órgãos cujas atividades se assemelham: a Magistratura (como poder que julga); o Ministério Público (responsável pela acusação na defesa de interesses gerais da sociedade); a Defensoria Pública (que defende os pobres); e a própria Advocacia Pública (que promove a defesa dos agentes, do patrimônio e das políticas públicas). Todas essas atividades jurisdicionais[1] eram exercidas por advogados de formação, que ingressavam no serviço público por concurso de provas e títulos.
Considerando que no plano federal também existiam tais carreiras e cargos, e que todos se submetiam a um único teto remuneratório, não seria inusitado ou despropositado adotar o mesmo tratamento nos níveis estadual e municipal. Para tanto era necessário criar um outro parâmetro que não fosse o subsídio de governador, que, além de não ser uma contrapartida pelo trabalho desenvolvido, seu valor era menor que a média de remuneração das carreiras dos operadores do direito no âmbito dos estados.
Entretanto, para evitar a vinculação da remuneração dos procuradores dos estados ao subsídio de governador, como proposto na PEC, era necessário, primeiro, criar o subteto estadual do Judiciário para que fosse possível, na segunda etapa, vincular a remuneração dos procuradores dos estados a este novo subteto. E assim foi feito: o cliente foi orientado a apoiar e trabalhar para a criação do subteto dos membros da Magistratura e sua aplicação aos Ministérios Públicos Estaduais.
Como já se tinha a tese e a ideia de como implementá-la, era preciso analisar as regras do jogo, identificando no Regimento Interno da Câmara dos Deputados quais as fases de tramitação e os prazos em cada uma delas, para então definir os passos a serem dados em cada fase. A PEC passaria por três instâncias, com possibilidade de intervenção em cada uma delas: Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC); Comissão Especial e Plenário.
A primeira fase da tramitação foi na CCJC, a mais limitada instância para promover mudanças no texto, porquanto sua função se restringia a examinar a admissibilidade, a constitucionalidade e a técnica legislativa da PEC. Não era possível, nessa fase, promover qualquer mudança de mérito - no máximo, sanar vícios de inconstitucionalidade.
Com o argumento de que a vinculação da remuneração de membros do Judiciário e do Ministério Público - instituições com autonomia administrativa, financeira e orçamentária - ao subsídio de governador seria uma interferência indevida na autonomia daquelas instituições de Estado, a CCJC poderia corrigir essa inconstitucionalidade flagrante. Esse argumento foi levado ao relator na CCJC, acompanhado do pedido de correção do vício de constitucionalidade, o que poderia ser feito por emenda saneadora do próprio relator. O relator, o então deputado Maurício Rands (PT/PE), atendendo ao apelo de diversas entidades representativas das carreiras jurídicas e considerando o fato de que não se tratava de mudança de mérito, aquiesceu aos argumentos e removeu a inconstitucionalidade em seu parecer, criando um subteto para os Judiciários Estaduais e estendendo sua aplicação aos membros dos respectivos Ministérios Públicos. O parecer, com as emendas saneadoras, foi aprovado em 5 de junho de 2003.
Portanto, nessa primeira fase, o objetivo foi alcançado, pois já se dispunha de uma referência para vincular o subteto dos procuradores dos estados. A vinculação do subsídio dos membros dos Ministérios Públicos Estaduais ao subteto de desembargador, fixado em 95% do subsídio de ministro do Supremo Tribunal Federal, era a primeira exceção de que necessitavam os procuradores dos estados para viabilizar seu pleito.
Com o primeiro passo da estratégia bem-sucedido, partiu-se para o próximo, que consistiu em mapear os principais stakeholders para, dentre eles, escolher aqueles que iriam, de um lado, patrocinar a emenda para vincular a remuneração dos procuradores estaduais ao subsídio de desembargador, e, de outro, articular e negociar a viabilização desse pleito junto ao relator, aos líderes e aos demais parlamentares. O perfil do “padrinho” da emenda deveria ser de alguém que: 1) fosse da base do governo; 2) tivesse formação jurídica; 3) gozasse de credibilidade perante seus pares; e 4) estivesse efetivamente disposto a dedicar tempo e esforço em favor do pleito, desde a coleta de assinaturas para a emenda até sua aprovação conclusiva. Dentre os nomes sugeridos, o cliente optou pelo nome do deputado Roberto Magalhães, um parlamentar com sólida formação jurídica, integrante de um partido da base do governo, pois estava na época no PTB, e profundo conhecedor da matéria, além de procurador estadual aposentado. Havia outros nomes com essas características, como os deputados Aloysio Nunes Ferreira (PSDB/SP), Luiz Antônio Fleury Filho (PTB/SP) e Michel Temer (PMDB/SP), todos oriundos de carreiras jurídicas, sendo Fleury procurador de justiça aposentado e Aloysio e Michel procuradores estaduais aposentados, mas a opção recaiu sobre o nome do deputado Roberto Magalhães.
Na fase da Comissão Especial, apresentava-se uma dificuldade adicional. Se, para criar o subteto do Judiciário e aplicá-lo aos magistrados e aos membros dos Ministérios Públicos Estaduais, além do argumento da interferência na autonomia do poder ou órgão, contava-se com o fato de serem os cargos vitalícios e inamovíveis, no caso dos procuradores dos estados, isto não seria possível. Ou seja, no primeiro caso não fazia sentido fixar critérios diferentes de remuneração entre cargos cujas atribuições e prerrogativas eram praticamente iguais, enquanto no segundo não existia esse mesmo nível de semelhança.
Nessa fase foi elaborada a Emenda, de nº 69/2003, cujo primeiro signatário ou subscritor, conforme tinha sido combinado com o cliente, foi o deputado Roberto Magalhães (PTB/PE), que foi exemplar em sua defesa. A emenda, porém, além dos procuradores dos estados, contemplava também os defensores públicos estaduais, uma carreira bem vista e com poucos integrantes, fato que reduzia a resistência dos governadores, já que o impacto financeiro seria bem menor do que o dos procuradores estaduais.
Assim, considerando a simpatia que os parlamentares, inclusive o relator da reforma na comissão especial, deputado José Pimentel (PT/CE), tinham pelos defensores públicos, novamente houve a necessidade de priorizar outra carreira, o que, sob o argumento da isonomia, criaria as condições para contemplar a inclusão dos procuradores. Isto criou um certo desconforto entre os procuradores porque supostamente seu consultor estava trabalhando para outras carreiras. No entanto, eles compreenderam e aprovaram a estratégia. Afinal, era muito arriscado avançar com seu pleito sem antes contemplar os outros, uma vez que esta era a condição para viabilizar o argumento que garantiria a aprovação da sua emenda, que, se fosse apresentada antes e isoladamente, provavelmente ninguém seria contemplado, devido à resistência dos governadores.
De fato, o relator aquiesceu em contemplar os defensores públicos em seu parecer, porém não foi possível fazê-lo na fase da Comissão Especial. No plenário, em parecer à Emenda Aglutinativa Substitutiva Global nº 4, do deputado Nelson Pelegrino (PT/BA) e outros, o relator acatou a inclusão dos integrantes das Defensorias Públicas estaduais no mesmo subteto aplicável aos Membros dos Ministérios Públicos estaduais. Essa emenda foi aprovada por 358 votos a favor, 126 contrários e nove abstenções, no dia 5 de agosto de 2003.
Com praticamente todas as carreiras jurídicas vinculadas ao subteto de desembargador, faltavam apenas os procuradores estaduais. Foi então que se colocou em prática a tática de indução, levando ao relator e aos líderes partidários a seguinte questão: se três das quatro carreiras essenciais à Justiça estão com subteto vinculado ao subsídio de desembargador, sendo duas delas sem qualquer subordinação ao Judiciário, que sentido faria não contemplar a quarta carreira, no caso a Advocacia Pública dos estados? Os parlamentares, para serem coerentes, ou incluíam os procuradores estaduais, também conhecidos como Advogados Públicos, ou teriam que retirar os defensores públicos, que é carreira do Executivo, do subteto de desembargador.
A estratégia foi vitoriosa. Ela foi capaz, a partir de elementos de persuasão e indução, de convencer os parlamentares sobre a necessidade, a conveniência e a oportunidade do pleito dos procuradores estaduais. Na madrugada do dia 7 de agosto de 2003, por 461 votos favoráveis, cinco contrários e uma abstenção, finalmente foi aprovada a Emenda Aglutinativa nº 8, objeto da fusão das Emendas nº 18, 69, 129 e 313, que mandou aplicar aos Procuradores estaduais o subteto dos Poderes Judiciários estaduais, que é o subsídio do Desembargador.
Este relato demonstra que, com informações de boa qualidade, com estratégias e táticas bem definidas, com transparência e atendendo a princípios éticos, com disciplina, paciência e identificando stakeholders confiáveis no processo, é possível orientar o exercício de influência de modo inteligente, observando as boas práticas de condução de pleitos setoriais em um sistema republicano e democrático.
Conselhos aos jovens profissionais de RIG:
Quando tratar com agente político ou autoridade governamental, certifique-se de que seu interlocutor delegou a tarefa a um assessor ou fez anotações sobre o pleito, pois caso não tenha adotado nenhuma dessas providências, dificilmente irá lembrar de dar seguimento à demanda. Além disso, não deixe de tomar nota de algum contato do assessor.
Seja perseverante na defesa de seus pleitos, “marque em cima”, mas sem sufocar seu interlocutor. O decisor, até por excesso de compromissos, pode lhe deixar na mão se você não estiver atento às tarefas e aos prazos.
Só patrocine pleitos ou assuma causas que sejam defensáveis ética e moralmente, e coincidam com o interesse público.
Nunca transija com questões éticas. A credibilidade é o segredo da atividade, por isso nunca descuide dos aspectos éticos da profissão, mesmo que eventual proposta lhe pareça vantajosa ou interessante.
Sempre que comparecer a eventos – audiência, reunião com autoridades ou com clientes – esteja preparado, com conhecimento sobre os assuntos a serem abordados e sobre os atores envolvidos.
Não existe milagre nesta área de atuação – o resultado é sempre produto de boas estratégias e muito empenho, dedicação, humildade e disciplina.
[1] Prestação jurisdicional consiste na efetivação do exercício dos direitos, garantais e obrigações dos cidadãos.
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