A vida da mulher é cheia de obstáculos impostos por uma sociedade que ainda tem muita dificuldade em abrir espaço em postos de liderança. Não é fácil mudar o status quo, mas ele demanda coragem de quem está ali dentro para conseguir mudar de postura, abrir novos caminhos e conquistar seu espaço.
A Abrig entrevistou Juliana Fleming, vice-presidente mundial de Operações da L’Óreal para uma das marcas de maquiagem do grupo, a NYX Professional MakeUp. Nas linhas abaixo, você vai ler sobre o processo de mudança que Juliana teve de passar com ela mesma para alcançar voos mais altos na carreira.
Juliana é engenheira química e iniciou sua carreira na multinacional como estagiária justamente na área de lidera atualmente. Na conversa, ela conta ainda sobre o que espera deixar de legado para a próxima geração e como a parceria dentro de casa foi importante para ajudar a levantá-la quando a mentalidade de autossabotagem se tornava protagonista.
ABRIG: Como foi sua chegada numa posição de destaque na L'Oréal. Você enfrentou alguma dificuldade por conta de ser mulher?
JULIANA FLEMING: Eu já trabalho na L'Oréal há 20 anos e comecei como estagiária em uma das fábricas do grupo. Na faculdade, fiz engenharia química. Ambos os ambientes são masculinizados. A L'Oréal tem uma grande vantagem porque eu sempre tive muitas mulheres em volta de mim, que já tinham comecado a quebrar essa barreira do preconceito.
Comecei a minha carreira dentro do ambiente de operações, (industria e supply chain) e foi dentro dele onde eu cresci. Quando eu olhava para cima, meus chefes eram sempre homens e era complicado achar que eu teria espaco para crescer. Em muitas reuniões, por exemplo, eu era a única representante mulher. Mas isso foi mudando ao longo dos anos, e hoje a L'Oréal é uma empresa muito inclusiva, é uma das melhores empresas na questão de gênero. E isso foi uma conquista da visão do quanto as mulheres nesse mercado podem fazer a diferença.
ABRIG: E como foi a sua ascenção na carreira?
JULIANA FLEMING: Eu já tive alguns episódios onde eu perdi a posição que eu estava para um homem, porque em algum momento a pessoa ameaçou sair da empresa. O episódio me deixou com esse sentimento de que perdi por ser mulher, porque eu iria aceitar a situacao facilamente sem reclamar, porque eu não brigaria pelo que eu queria. Fiquei muito tempo nessa posição que acaba aceitando, onde esperamos ser reconhecidas pelo nosso trabalho sem ter nunca a mesma coragem que os homens têm de brigar, de dizer o que eu queria e lutar.
ABRIG: Como foi a transformação internamente pra você, de não lutar para ser uma lutadora?
JULIANA FLEMING: Infelizmente a sociedade nos impõe a todo o tempo a perfeição para nós mulheres termos o direito a alguma coisa. Eu comecei a estudar sobre essa forma que a mulher é criada, como é vista na sociedade e todo patriarcado que existe por trás. E isso me fez acordar. Eu já sentia uma indignação em relação a porque os homens crescem mais rápido na carreira, porque os salários deles são mais altos que os nossos. E foi quando eu cansei de aceitar isso de uma forma mais pacífica. Fui, então, tomada por uma confiança no meu trabalho, no meu conhecimento, e coragem para dizer "não concordo", “não acho que ele merece estar nesse lugar ”, “mereço essa promoção por causa disso”... Levei muito tempo pra ter coragem e fazer isso.
Por isso a gente precisa trabalhar como sociedade feminina esse autoconhecimento, essa autoconfiança para que a gente possa brigar nesse mundo onde os homens realmente dominam. Se nós mulheres não mudarmos nosso mindset, a gente não vai sair do lugar.
ABRIG: A questão da coragem chama muito atenção na sua carreira. Olhando para trás, você acha que a mudança de postura aconteceu no momento certo?
JULIANA FLEMING: Olhando pra trás eu acho que a mudança aconteceu tarde demais. Se eu tivesse o conhecimento que eu tenho hoje, eu teria feito essa mudança muito antes. Não existe um programa nas empresas que diz para as mulheres: "Ei, acorda! Usa tudo o que voce aprendeu porque aqui você pode brigar de igual pra igual". Não existe isso. Lá atrás eu cheguei a recusar projetos, mesmo sabendo que eu daria conta deles. Eu recusei por temor de liderar meus pares.
ABRIG: Você se autossabotava?
JULIANA FLEMING: Sim, era uma autossabotagem total. Por não confiar em mim, por achar que não era capaz de fazer isso. Mas tive um chefe muito legal que me disse: vai, você é capaz. Então eu tive que acreditar na confianca de uma terceira pessoa para que eu pudesse confiar em mim.
Então essa reprogramação mental foi o que me fez ter coragem de não dizer não para mais nada que apareceu para mim na minha carreira.
ABRIG: O que você projeta para a próxima geração de mulheres que vai entrar no mercado de trabalho?
JULIANA FLEMING: Vejo pela minha filha de 13 anos. Ela tem muito menos medo que eu. Ela já não enxerga essa diferença entre o homem e a mulher, para ela já está todo mundo no mesmo barco. Essa geração, quando chegar ao mercado de trabalho, vai saber encontrar um melhor o equilíbrio da vida, conseguirao mostrar que dá sim para fazer tudo, e que não precisa ser perfeita em tudo. E que está tudo bem não ser perfeita.
ABRIG: Como foi a sua mudança para assumir esse posto na L’Óreal nos EUA?
JULIANA FLEMING: Vou te dar um aspecto pessoal dessa minha mudança. Quando recebi essa proposta, meu marido teve de abrir mão da carreira dele para a gente investir juntos numa oportunidade para mim, com novas chances, com novos horizontes. Nossa relação já era de muita parceria. Eu, mulher, trouxe meu marido, que era muito bem sucedido em sua carreira, para os EUA.
ABRIG: Em relação à adaptação profissional, você sentiu muita diferença?
JULIANA FLEMING: Com certeza. Hoje, as dez pessoas que reportam diretamente para mim vêm de origens mundiais diferentes. Então a L'Óreal me proporciona vivenciar essa diversidade cultural, junto com a diversidade de gênero, o que para a empresa são pontos importantíssimos.
Apesar disso, ainda com todas as oportunidades e todas janelas que a empresa nos abre para diversidade, quando eu cheguei, sofri dois tipos de preconceitos: um por ser mulher outro por ser latina.
No começo, eu me lembro dos olhares que recebia dos homens que hoje trabalham comigo: "o que essa menina está fazendo aqui?", ou “por que eu não foi promovido para esse lugar?”. Não é fácil ser julgada dessa maneira. Além disso, eu levei no mínimo seis meses pra conseguir me expressar da forma como eu queria e para conseguir entender as coisas como eu queria. Chegou uma hora que eu estava quase caindo e desistindo... De novo aquela autossabotagem. Eu me questionava se a L’Oréal tinha cometido o maior erro da vida me colocando neste meu posto. E mais uma vez precisei ouvir alguém para me dar força. Hoje, posso dizer que não teria conseguido sem o apoio do meu marido graças ao tipo de relacionamento que construímos ao suporte dele em toda essa mudança e a adaptação.