Em conformidade com o inciso V do art. 59 da Constituição Federal de 1988 (CF), as medidas provisórias (MPs) inserem-se no rol de normas decorrentes do processo legislativo. Em nível federal, as disposições para a edição e as regras de tramitação são fundamentadas pelo art. 62 da Carta Magna e pela Resolução nº 1, de 2002-CN.
De acordo com o § 9º do art. 62 da CF, antes de as MPs serem apreciadas em sessões plenárias separadas de cada uma das Casas do Congresso Nacional, cabe a uma comissão mista, composta por deputados e senadores, examiná-las e sobre elas emitir parecer. Ainda que as deliberações das comissões mistas não possuam apreciação conclusiva, podendo ser modificadas pelo Plenário, a sua atuação é imprescindível. Segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ADI 4.029/DF, de 07/03/2012, a MP não pode ser apreciada em Plenário sem o parecer da comissão, havendo, assim, a necessidade de reflexão mais aprofundada do ato normativo, sob pena de inconstitucionalidade formal.
Em função das recomendações das autoridades sanitárias nacionais e internacionais referentes ao isolamento social impostos pela pandemia do coronavírus (Covid-19) e com o objetivo de mitigar a presença física dos parlamentares no Congresso Nacional, como forma de evitar aglomerações desnecessárias, foi implementado, em cada Casa legislativa, o Sistema de Deliberação Remota (SDR), alcançando os Plenários, mas deixando de fora os trabalhos das comissões. Essa nova sistemática atingiu em cheio o rito de tramitação das MPs, levando à concentração da atuação dos parlamentares no Plenário, dispensando-se a atuação da comissão mista. Para se adaptar a essa nova realidade, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal aprovaram o Ato Conjunto nº 1/2020, que dispôs sobre o regime excepcional de tramitação das MPs. Essa decisão impactou fortemente os procedimentos legislativos das medidas provisórias.
Com o encerramento da emergência em saúde pública e, por conseguinte, o retorno das atividades presenciais do Congresso Nacional, faz-se necessário resgatar a tramitação original das MPs. Nesse contexto, circula nos meios políticos do Congresso Nacional uma minuta de Ato Conjunto das duas Casas legislativas, já em tramitação adiantada no Senado Federal, que dispõe sobre o retorno ao regime ordinário das MPs. Tal ação legislativa ainda carece da maturação política por parte da direção da Câmara dos Deputados. O atual regime de tramitação mitigada mantém os poderes do presidente da Câmara dos Deputados, já que, dentre outros aspectos, as MPs iniciam a sua tramitação plenária pela Câmara baixa.
Segundo o teor da minuta do novo Ato Conjunto, a retomada da tramitação normal valeria para as MPs editadas a partir de 1º de janeiro de 2023, resgatando o prazo de seis dias para o oferecimento de emendas, contados a partir da data de publicação do Ato, sem prejuízo da validade das emendas já apresentadas antes desse prazo, permanecendo aplicáveis às MPs editadas antes de 1º de janeiro de 2023 os procedimentos previstos no Ato Conjunto nº 1 de 2020.
Diante do impasse entre Casas legislativas, não se pode descartar que a polêmica seja levada mais uma vez ao STF, visto que em 2012 o Tribunal já se posicionou a favor do cumprimento do dispositivo constitucional que prevê a análise de MPs pelas comissões mistas, ainda que em 2020 o STF tenha autorizado a análise direta pelos Plenários, porém somente enquanto perdurasse os efeitos do estado de calamidade por causa da pandemia.
Entendendo-se que é no início de mandato que o presidente da República edita uma grande quantidade de MPs para viabilizar especialmente as suas promessas de campanha, há atualmente dentre as MPs apresentadas pelo Governo e pendentes de debate e aprovação a que criou e reorganizou ministérios, aquela que transferiu a estrutura do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central para o Ministério da Fazenda, a que mudou a regra de desempate de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), assim como a MP que amplia a faixa de isenção do imposto de renda. Tais matérias interessam a inúmeros segmentos da sociedade organizada.
A retomada, o mais brevemente possível, do regime ordinário e integral de tramitação das MPs, especialmente quanto aos trabalhos presenciais das comissões mistas, resgataria a qualidade da atuação parlamentar e facilitaria sobremaneira a atividade de RIG, dando mais tempo e previsibilidade para sejam propostas melhorias aos textos das MPs, o que contribuiria decisivamente com o processo democrático e com a qualidade das leis.
Miguel Gerônimo da Nóbrega Netto possui 35 anos de experiência de Congresso Nacional. Tem mestrado em Poder Legislativo e especialização em Processo Legislativo. É graduado em Ciências Econômicas e em Direito. Foi diretor legislativo adjunto e chefe da Assessoria Técnica da Diretoria Legislativa da Câmara dos Deputados durante duas décadas. É professor de Processo Legislativo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É autor de cinco livros sobre Processo Legislativo, dentre os quais “Curso de Regimento Interno” e “Curso de Regimento Comum do Congresso Nacional”, editados pela Câmara dos Deputados.